segunda-feira, 14 de maio de 2007

"Toco sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca,
vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão,
como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse,
e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar.
Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo,
a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas,
com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto,
e que por um acaso que não procuro compreender coincide com a sua boca,
que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.
Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope,
olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores,
se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham,
respirando confundidos, as bocas se encontram e lutam debilmente,
mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes,
brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem
com um perfume antigo e um grande silêncio.
Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo,
acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo,
enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores,
de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos,
a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego,
essa instantânea morte é bela.
E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura,
e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água. "

Júlio Cortazar

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