terça-feira, 23 de agosto de 2011





Contigo



Para atravessar contigo o deserto do mundo.
Para enfrentarmos juntos o terror da morte.
Para ver a verdade, para perder o medo ao lado dos teus passos caminhei.
Por ti deixei meu reino, meu segredo.Minha rápida noite, meu silêncio.
Minha pérola redonda e seu oriente.
Meu espelho, minha vida, minha imagem.
E abandonei os jardins do Paraí­so.
Cá fora à luz sem véu do dia duro.
Sem espelhos vi que estava nua.
E ao descampado se chamava Tempo.
Por isso com os teus gestos me vestiste.
E aprendi a viver em pleno Vento.



Sophia de Mello Breyner Andresen

Cerme



Cava bem fundomeu coração,
Se buscas conhecer-me.
A face que tu vês tão risonha diante da vida
Não diz muito,
Não diz tudo...
Tu o sabes!
Mas se ainda assim tu não me descobres,
Arranca-me o coração,
Deixa-me o nome,
Devora-o
E vive-me...


Maria Jânia Teixeira

Ensinamento



O Tempo é um presente...
Os anos ensimam coisas que os dias não sabem.

Vôo

Um pássaro, que apesar de sua vontade nunca chegou alto em seus vôos.
Mas que um dia resolveu ousar, e foi muito, muito alto.
O melhor vôo de sua vida.
Até que começou a chover, as gotas d'água
encharcando as penas de suas asas,
e caiu.
Mesmo depois de curado o pássaro não tinha mais coragem de ir além.
O medo era maior que sua vontade,
e ele mais uma vez se limitou a vôos baixos.
Foi em um desses vôos que uma rachada de vento
o colocou novamente as alturas.
E ele percebeu que poderia sim, ir mais e mais alto,
ir a altura do prazer em voar.
A vida é assim,
muitas vezes somos o pássaro, precisamos do vento pra chegarmos além.
E outras vezes somos o vento,
prontos a colocar o pássaro à altura do prazer.
Lembrando que,
para o vento ajudar o pássaro ele precisa pelo menos tentar o vôo baixo.
E o vento ser sábio o bastante para perceber qual a
intensidade da rachada para cada pássaro.

Se recordo



Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.

Ricardo Reís

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Cores


Gostava de tinto e bebia verde

Gostava de Cesário Verde e lia Guimarães Rosa

Apaixonou-se por Rosa e casou-se com Violeta

O daltonismo tem destas coisas

Até jura que tem sangue azul



Fernando Gomes


Poema








O meu poema é feito

Para ser imagem (sem ser visto)

E falar em silêncio de um suspiro refletido

É lido para ser pensado

E viver no pensamento adormecido

Como um vôo de pássaro que passou

O meu poema é um jeito de fechar os olhos



Lilia Chaves

Lidos



Os leitores extraem dos livros, consoante o seu caráter

A exemplo da abelha ou da aranha que do suco das flores retiram

Uma o mel

Outra o veneno



Nietzsche


Lembranças



Quando eu era pequenina e espiava o mundo pelas grades do portão, via sempre um véinho passando, gritando:
- Ói algodão!
Um dia, resolvi sair e pegar a fila das crianças. Fiquei esperando o véinho transformar açúcar em nuvens, açúcar em mágica, em pedaços de carinho. Quando ficou pronto, mal podia acreditar! Peguei o algodão nos dedos e perna-pra-te-catar!
Lá de longe, o véinho gritou:
- Ô, o dinheeeeeeiro?
Eu virei e respondi:
- Não, vô! Num picisa de dinheiro, não! Só o algodão-doce já tá ótimo! Só o algodão-doce tá bão!
O véinho deu risada e logo respondeu:
- É mesmo, né ? Só o algodão-doce já tá ótimo! Só o algodão-doce tá bão! "


Rita Apoena