quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

Mudez divina...
"Os homens se gastam tanto em palavras
que não podem entender
o silêncio de Deus."

Dom Hélder


Empresta-me tua flauta mágica...
"Andam todos agressivos.
Dão a impressão de insones, esgotados, nervos tensos.
Não falam, agridem.
Estão quase incapazes de julgar bem;
de crer na palavra alheia, de amar.
Seria bom demais, Senhor,
serená-los, desarmá-los,
fazê-los dormir."

Dom Hélder


Nada de ideais ao alcance das mãos...
"Gosto de pássaros que se enamoram das estrelas
e caem de cansaço ao voarem em busca da luz..."


Dom Hélder

Que penalidade prever...
"Pra quem contradiz a criança segura de ter nas mãos
uma varinha de condão,
certa de que se tornou invisível ao pronunciar a palavra mágica
"Abracadabra"...
Penalidade?
Para que maior castigo do que não ter senso poético,
não ter imaginação?"

Dom Hélder


Faze de mim um arco-íris...
"Que acolha todas as cores em que se fragmenta a Tua luz!
Faze de mim,
sempre mais,
um arco-íris que anuncie a bonança
depois das tempestades..."

Dom Hélder

Que irás dizer?
"Olha em redor, desde os milhões de estrelas pelas alturas,
às pedras, à água, aos animais e às plantas,
caminhas entre seres sem voz...
Olha mais ao redor:
Olha...
até ver o invisível e tremerás
ante o silêncio dos anjos
e o silêncio de Deus.
Agora,
fala..."

Dom Hélder


"Ao carro empacado,
bastou o empurrão de um carro amigo...
à almas cansadas e vencidas,
basta,
por vezes, ainda menos..."

Dom Hélder

terça-feira, 26 de dezembro de 2006


Porque no orvalho das pequenas coisas
é que o coração encontra a sua manhã
e a sua frescura.

Khalil Gibran


Como quem sente
na legenda do presente
o fim duma história breve,
vou vivendo um sonho intacto
num pesadelo crescente
uma luz fecunda e leve
nos olhos pardos dum gato.

Fernanda Botelho

Abrigo

Abrigo-me de ti
de mim não sei
há dias em que fujo
e que me evado
há horas em que a raiva
não sequei
nem a inveja rasguei
ou a desfaço
Há dias em que nego
e outros onde nasço
há dias só de fogo
e outros tão rasgados
Aqueles onde habito com tantos
dias vagos.

Maria Tereza Horta

Das viagens

Viajo
no teu corpo
caminhos
nunca imaginados
delírios
de náufrago à deriva
em noite de temporal
Viajo
em ti
sonhos de uma ternura
nunca sentida.

Ademir António Bacca


"O teu coração está onde está o teu tesouro.
E o teu tesouro precisa de ser encontrado,
para que tudo possa fazer sentido"

Autor Desconhecido

segunda-feira, 25 de dezembro de 2006


Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.
É ouvir-te melhor

Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.
Tu és melhor
Muito melhor!

Do que tu.
Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny

Quantas vezes te digo
quantas vezes
que és para mim
o meu homem amado?

O que chega primeiro
e só parte por vezes
antes de perceber
que já tinhas voltado

Quantas vezes te digo
quantas vezes
que és para mim
o meu homem amado?

Aquele que me beija
e me possui
me toma e me deixa
ficando a meu lado

Quantas vezes te digo
quantas vezes
que és para mim
o meu homem amado?

Que sempre me enloquece
e só aí percebo
como estava perdida
sem te ter encontrado

Maria Tereza Horta

Não canto porque sonho


Não canto porque sonho
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
O teu sorriso puro,
A tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
somente um bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinha.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
Por vê-los nus e suados.

Eugénio de Andrade

domingo, 24 de dezembro de 2006

Esses hábitos que tens


Hoje acordei e ainda sonhando,
naqueles instantes entre sonhar e acordar,
senti tua perna se roçar entre as minhas

Esse hábito doce que tens
de me acordar...

Ouvi muito longe, o teu respirar,
suave e pausado, murmurando
coisas sem nexo

Esse hábito doce que tens
de me saudar de manhã...

Semi-adormecida, pegaste minha mão
e a puseste entre os seios
meu pouso diário

Esse hábito lindo que tens
de me excitar...

E viajei nos meus sonhos, não querendo acordar,
amando o teu corpo, vezes sem conta
e então despertei, sentindo saudades

Desses hábitos antigos
que tinhas comigo...
Artur Ferreira

Quando olho para mim não me percebo


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei
Tal qual me julgo verdadeiramente?

Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Álvaro de Campos

sábado, 23 de dezembro de 2006


Desmama-te desanca-te desbunda-te
Não se pode morar nos olhos de um gato
Beija embainha grunhe geme
Não se pode morar nos olhos de um gato
Serve-te serve sorve lambe trinca
Não se pode morar nos olhos de um gato
Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te
Não se pode morar nos olhos de um gato
Arfa arqueja moleja aleija
Não se pode morar nos olhos de um gato
Ferra marca dispara enodoa
Não se pode morar nos olhos de um gato
Faz festa protesta desembesta
Não se pode morar nos olhos de um gato
Arranha arrepanha apanha espanca
Não se pode morar nos olhos de um gato
Alexande O'Neill

Os Sonhos

De repente acordo e vejo bem perto
De mim, colado quase ao meu, desnudo,
Também, cansado, inerte no veludo,
O corpo dela, sem censura, aberto
O coração, de sentimento incerto,
Às vezes, mesmo, indiferente a tudo.
De tanto vê-la assim me desiludo
E me entristeço sempre que desperto.
Sem esperança de acordar com ela,
Eu fico preso ao meu amor constante
E paro, e penso e sinto, num instante,
Quando ela dorme, assim, imóvel, bela
Eu dos seus sonhos estou tão distante,
Que nem parece que estou junto dela.

Abdias Sá

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Aurora Boreal


O que vejo
não passa de um lindo arco-íris no céu,
fugaz.
Sedutor espectro de luz
que um conjunto de circunstâncias faz
e que o acaso produz.
Assim como o acaso genético que sou,
à deriva em um mar de acasos
em que me decomponho
ao vento dos eventos, o acaso em que, no último momento,
morro,
fugaz.
Posso escolher a cor lilás
como minha preferida,
embora seja azul a mais querida,
mas isso não altera em quase nada
o meu peso.
Há que ver-se, um dia,
uma aurora boreal
de uma noite sem fim,
iluminar o ocaso,
varrer, em labaredas,
o céu cruel do acaso.

Maria do Carmo Vieira